O termo “Repentina”, método criado pelo Professor Ivens Fontoura (1940-2020), é uma proposição de projeto de curta duração, lançado inicialmente como uma proposta pedagógica. Inspirado nos cancioneiros repentistas, que, de improviso, desafiam um oponente por meio do canto.

O conceito vai muito além dessa descrição. É uma provocação pura e, além de ser um dos legados de Ivens, foi muito à frente de seu tempo. Agora, vemos ser valorizado e realizado por diversas áreas do conhecimento, sob o nome estrangeiro “Hackathon”, como se fosse uma novidade do exterior, embora tenhamos uma versão bem nacional e genial.

Ivens Fontoura é uma figura importante na história do design no Brasil. Foi um dos fundadores do curso de Design da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde lecionou até se aposentar. Criou a Bienal Brasileira de Design e coordenou o primeiro curso de Pós-Graduação em Design de Móveis do Brasil, na Unopar, em Londrina. Além disso, foi presidente da Associação Nacional de Designers (AND) e da Associação Latino-Americana de Design (ALADI). De 1988 a 2009, assinou a coluna “Designdesigner” no jornal O Estado do Paraná. Participou como jurado de concursos brasileiros e internacionais de design, além de atuar como curador de exposições na área. (Histórias do Design no Paraná. Ivens Fontoura e a coluna “Designdesigner” no Diário do Paraná, escrito por Christiane Ogg e Cláudia R. H. Zacar).

Entre essas atividades, lançou a “Repentina” em 1990. Naquele ano, organizava a Bienal Brasileira de Design em Curitiba, que aconteceria no ano seguinte, 1991. Como parte das atividades preparatórias, realizou a primeira Repentina com a participação do prefeito Jaime Lerner. Eles lançaram a ideia da “capital brasileira do design”:

“A cidade de Curitiba é reconhecida internacionalmente como a capital ecológica brasileira. A partir de 27 de setembro de 1990, passa a ser a ‘capital brasileira do design’. E para comemorar este fato, a Bienal Brasileira de Design promoveu no dia 29, concomitantemente às cerimônias de instalação de sua primeira edição, uma “Repentina” com a participação de estudantes e professores de várias instituições de ensino de design do país. Na tentativa de integrar ecologia e design, a Bienal reuniu a Universidade Federal do Paraná, a Pontifícia Universidade Católica do Paraná e a Prefeitura Municipal de Curitiba para a realização da primeira Repentina de design no país.” 

Estado do Paraná, Caderno Almanaque Coluna Designdesigner. 21 de outubro de 1990. Ivens Fontoura : https://acervocolaborativodedesign.com.br/1990-10-21-o-estado-do-parana-designdesigner

Anos depois, a realização da Bienal Brasileira de Design compunha um dos argumentos para a candidatura de Curitiba como cidade criativa da UNESCO, concedido em 2014. 

Atualmente, o tema do decolonial está em pleno foco da comunidade, não só do design. Essa postura desafia convenções, colocando no protagonismo as ideias originais surgidas com base na nossa cultura. Usar termos anglicizados não faz muito sentido no contexto de um design mais decolonial, que busca soluções e ideias mais inclusivas e representativas. O design pode promover a diversidade, reconhecendo o valor dos conhecimentos locais e contribuindo para uma prática de design mais ética e equitativa. Abordando questões de poder, identidade e cultura, o design decolonial tem o potencial de transformar a forma como produtos, serviços e ambientes são concebidos e utilizados, promovendo uma sociedade mais justa e igualitária.

Neste sentido, adotar o termo “Repentina” seria algo muito sensato a se fazer.

Uma das curiosidades e estratégias das Repentinas era a divulgação e preparação do evento. Na maioria das vezes, o tema era revelado apenas na hora, o que provocava os participantes e atiçava sua curiosidade. Por exemplo, na divulgação da realização de um evento, eram solicitados itens inusitados para levar para a atividade, como um ovo cru, aumentando ainda mais a expectativa, embora esses itens muitas vezes não fossem utilizados. Essas provocações faziam parte das preparações e aumentavam a curiosidade de todos.

A Repentina foi um dos pilares do NDesign – Encontro Nacional dos Estudantes de Design – em Curitiba, em 1991. Foi um dos chamarizes para conseguir o apoio da prefeitura, resultando em uma enxurrada de insights para o programa “Lixo que não é lixo” em forma de brinquedos. A ideia era conquistar as crianças para a causa da reciclagem. O Brasil inteiro se utilizou dessa ideia curitibana, muitas vezes sem saber de sua origem.

Cena da Repentina de 1991. no N Design (foto: Claudio Barão)

Jaime Lerner no dia do lançamento da proposta no 1º N Design

Ivens Fontoura durante a Repentina do 1º N Design

Além da histórias por trás da Repentina ela foi precursora de ideias que hoje utilizamos frequentemente em Hackathons, incluindo:

– Método ágil e com ciclos rápidos;

– O poder da cocriação;

– Estímulo à criatividade;

– Integração entre as pessoas;

– Interação, entre outros.

Neste sentido, a versão brasileira proposta pelo Professor Ivens e impulsionada pelo NDesign merece ser conhecida e adotada pela comunidade brasileira. Além das semelhanças, contém diversos elementos originais para ser estudada e valorizada.

Conclamamos os designers do Brasil a utilizarem um produto genuinamente brasileiro. A ideia foi disruptiva e genial! Assim, vamos de “Repentina” para contribuir com a sociedade.

Leituras complementares

1990-10-21 O Estado do Paraná – Designdesigner – Acervo Colaborativo de Design- Artigo : O Design e o Lixo que não é Lixo

1991-03-31 O Estado do Paraná – Designdesigner – Acervo Colaborativo de Design – Artigo : Repentina Gráfica para o N. design

1991-09-15 O Estado do Paraná – Designdesigner – Acervo Colaborativo de Design – Artigo: Repentina do Lixo que não é Lixo

Acervo das fotos do NDesign:  bit.ly/1N_flickr

Depoimentos

“As Repentinas foram uma novidade superinteressante, lembro que estávamos muito animados em ter uma equipe multidisciplinar, trabalhar com pessoas que não conhecíamos. Um ambiente muito colaborativo e efervescente, muitas pessoas pensando e colaborando para solucionar um problema, era sempre divertido e animado!
Ficava muito animada em apresentar uma proposta inovadora, viável e criativa no um curto espaço de tempo. Pra mim o mais legal era poder contribuir na resolução de problemas sociais.

A atividade era toda desafiadora”
Miriam Zanini, Doutoranda em Design

1990-10-21 O Estado do Paraná – Designdesigner – Acervo colaborativo do Design

O Design e o Lixo que não é Lixo

A cidade de Curitiba é reconhecida internacionalmente como a Capital ecológica brasileira. A partir de 27 de setembro de 1990, “capital brasileira do design”. E para comemorar este fato a Bienal Brasileira de Design promoveu dia 29, concomitantemente às cerimônias de instalação de sua primeira edição, uma “Repentina” com a participação de estudantes e professores de várias instituições de ensino de design do país. Na tentativa de integrar ecologia e design, a Bienal reuniu a Universidade Federal do Paraná, a Pontifícia Universidade Católica do Paraná e a Prefeitura Municipal de Curitiba para a realização da primeira repentina de design no país.

O termo “repentina” refere-se à conhecidíssima expressão “repente”, lembrando as ações do cancioneiro repentista que responde em versos a um tema repentinamente. Em outras palavras, uma ação rápida; no caso do design, trata-se de uma atividade projetual com restrição de tempo e realizada através de grupos de profissionais ou estudantes, ou ambos, com característica de “grupos criativos”. O objetivo principal do evento é a solução de um determinado problema no âmbito do design a partir de um tema devidamente proposto. Neste caso, equipes miscigenadas por estudantes das duas universidades com orientação e acompanhamento de seus professores. Diante da programação oficial do evento e da presença de estudantes, professores e profissionais de outras instituições e estados brasileiros, a mencionada repentina foi integrada por eles e passou a ter caráter nacional.

O tema proposto foi motivado no programa “Lixo que não é Lixo” implantado pelo prefeito Jaime Lerner em Curitiba, com o intuito de educar a população na separação dos objetos e materiais domésticos passíveis de reciclagem. O próprio prefeito acompanhado de assessores de seu governo como Manoel Coelho e Gerson Schumann estiveram no auditório do Centro de Ciências Exatas e de Tecnologia da PUCPR para explicitar o tema da repentina.

Diante de novos hábitos para a separação do lixo orgânico do lixo reciclável e seu consequente armazenamento temporário em casa e apartamento, a família curitibana está enfrentando um novo problema. Onde e como realizar esta importantíssima tarefa no sentido de colaborar com a preservação da natureza e melhoria das condições de vida. Aí entra o designer! O tema da repentina é o design de um equipamento receptor para a guarda temporária do “lixo que não é lixo” durante o intervalo de passagem do caminhão do sino comunicando sua presença.

O trabalho foi desenvolvido em um período ininterrupto de nove horas, movimentando 64 estudantes organizados através de 14 equipes. A repentina foi coordenada pelos professores Ivens Fontoura e Antonio Fontoura com apoio de Isabela Almeida Lima. Além da orientação de outros cinco professores da UFPR e PUCPR, participaram Alvaro Guillermo Guardiã da Universidade de Guarulhos, Claudia Floriano Barbosa do LBDI e Eduardo Carvalho Araújo da UF da Paraíba, de Campina Grande.

O primeiro projeto desta página é de autoria de Cindy Renate Xavier, Katia Yoko Sakiama, Sérgio Luiz Inglat e Yara Cunha. O segundo, de Célio da Silva, Francisco Mendonça, Miriam Zanini e Raquel Glovatizki. O terceiro, de Claudia Ferraz, Luís Claudio Mazolla, Niara de Oliveira, Sergio Ranciaro e Yeda Cristina Hass.

Repentina do Lixo que não é Lixo

15 de setembro de 1991

O conjunto de aproximadamente duas centenas de brinquedos que compôs a exposição no Centro de Criatividade de Curitiba é o resultado de uma experiência inovadora no país. Trata-se de um trabalho coletivo na área do design denominado repentina.

O termo repentina lembra a ação do cancioneiro que em forma de verso responde de imediato a qualquer forma de estímulo externo. No âmbito do design, trata-se de um exercício projetual reunindo as conhecidas técnicas criativas da Heurística – atividade da descoberta – como o “brainstorming” e o “sincréticos com s”. O primeiro, em forma de explosão de ideias diante de um problema anunciado. O segundo, uma forma de reunião ativa com pessoas de diferentes níveis de capacidade e distintos traços culturais.

A repentina para o projeto de brinquedos a partir de materiais reciclado do lixo urbano é o resultado do encontro de ideias avançadas. De um lado, o conceito e a proposta pedagógica da repentina como um apelo à otimização do desenvolvimento de projetos de design; de outro, a proposta social e ecológica da administração municipal de Curitiba em função da busca de soluções adequadas às melhorias da qualidade de vida. Uma forma de repensar a cidade e seus problemas do cotidiano.

A geração de novas propostas para a construção de brinquedos na repentina do 1º NDesign ocorrida no dia 19 de julho de 1991 testemunha a potencialidade do estudante brasileiro de design estimulado pela citada proposta pedagógica. Por outro lado, os brinquedos representam o que se pode fazer com o material reciclado do lixo depois de jogado fora pela população de uma cidade. Caso Curitiba não tivesse iniciado seu programa de coleta seletiva do lixo, separando a matéria orgânica do “lixo que não é lixo”, tal experiência não poderia ter sido realizada.

As primeiras experiências com a repentina aconteceram dentro de uma sala de aula da Universidade Federal do Paraná no primeiro semestre do ano de 1990. Isto aconteceu na disciplina de Projeto e seu Desenvolvimento lecionada por este colunista à terceira série do curso de design industrial, uma vez detectado que os alunos constituíam significativa parcela de um tempo não desprovido de um propósito. Este fato, salvo questões de ordem política ou tecnológica, não acontece no dia a dia do meio produtivo, motivo pelo qual se levou a referida proposta.

A seguir, no dia 29 de julho de 1991, aconteceu oficialmente a primeira Repentina de Design no Brasil, pois este tipo de atividade projetual constou da programação da “I Bienal Brasileira de Design”, em Curitiba. Participaram aproximadamente 90 pessoas entre estudantes, docentes e profissionais de diversos estados brasileiros. A partir de um trabalho de parceria entre a Secretaria de Estado da Cultural por meio da Bienal e a Prefeitura Municipal de Curitiba, os participantes reunidos em equipes de trabalho projetaram 14 diferentes soluções para coletores de lixo doméstico e urbano, capazes de propiciar a coleta selecionada de lixo doméstico e urbano, capazes de propiciar a coleta selecionada do lixo orgânico e do “lixo que não é lixo”.

A exposição de Brinquedos da repentina do 1º NDesign a partir do lixo reciclado terminou com um final feliz. Na terça-feira passada foi entregue pela Prefeitura Municipal de Curitiba um “folder” colorido com alguns exemplares da mostra.

Paralelamente, os estudantes de design da UFPR trabalhavam na tentativa de reunir pela primeira vez no Brasil seus colegas em um encontro nacional. Assim sendo, aconteceu nas instalações da PUC-PR o 1º PRÓ-ENED. Depois, em dezembro do mesmo ano o 2º Pró-ENED no campus da UFRJ, no Rio de Janeiro. O entusiasmo da primeira repentina estimulou também lideranças como a do professor Álvaro Guilhermo da Universidade de Guarulhos a realizar a primeira repentina no Estado de São Paulo ainda no final de 91; e os organizadores do 1º NDesign a propor desde o início uma repentina dentro do Encontro Nacional de Estudantes de Design, ocorrido no período de 14 a 21 de julho de 1991.

Durante os primeiros contatos com a Prefeitura Municipal de Curitiba, o prefeito Jaime Lerner tomou a iniciativa de propor também seu tema em consonância com a atual política de administração municipal.

Nesta repentina, a participação ultrapassou a expectativa alcançando a cifra aproximada de 500 estudantes e algumas dezenas de professores, inclusive de Auresnede Stephan Pires, vice-presidente da ABEnD, Associação Brasileira de Ensino do Design.

O empenho com que os estudantes de design do país tiveram na produção de tais brinquedos é a resposta certa para o problema do desperdício e a necessidade de se formar uma consciência de racionalização do uso de matérias-primas, bem como de sua reciclagem.